sábado, 24 de março de 2012

Bach: o gênio da música que tocou os céus e os corações

BACH, O QUINTO EVANGELISTA
Celso Brant

INTRODUÇÃO

A música de Bach não é produto de um homem nem a obra de uma geração, mas o resultado de longo trabalho em comum. Alguns séculos de polifonia colocaram em suas mãos uma linguagem, um estilo e uma compreensão do mundo. Com esses elementos, já trabalhados por grandes e nobres espíritos, a sua missão ficou facilitada e não lhe foi difícil dar o melhor de si ao mundo. Fê-lo com a simplicidade e a humildade com que as árvores oferecem os seus frutos e os pássaros enriquecem a paisagem do amanhecer com os seus cantos. Teve mestres, é certo; mas entre o que os professores lhe ensinaram e o que nos ensinou a todos nós, seus alunos, há uma diferença maior que a existente entre a luz da vela e a do sol. Bach, como um demiurgo, tirou o seu mundo de si mesmo. O seu poder de criação era tal, que se diria ter nele se refugiado o “fiat” divino para poder ampliar as fronteiras do mundo.

Eisenach foi, bem a propósito, o seu berço natal. Ali, no castelo de Wartburg, algum tempo antes, Lutero havia se recolhido para traçar os planos da Reforma. Em tudo ainda sentia a lembrança de Santa Isabel, cuja virtude era, principalmente, um exemplo de amor à humanidade, pobre, infeliz e pecadora... O mesmo espírito que presidiu à Reforma foi o que deu vida e força à sua obra: a paixão pelo Cristianismo na pureza primitiva. Só quando o espírito de uma época se impregna de tal forma de um ideal que passa a tirar dele a sua seiva e sua vida, é que se torna possível o aparecimento de grandes obras de arte. Cria-se, assim, ao lado de uma linguagem comum, um mundo de anseios a serem expressados, definidos. O grande destino histórico de Bach foi oferecer-nos uma versão musical do Cristianismo. Os pintores do Renascimento, os seus escultores e arquitetos, cuidaram de fixar o espírito cristão em linhas, cores e volumes. Bach transformou o Cristianismo em som. E essa versão é, sem dúvida, a mais fiel, a mais pura e a mais profunda. Há, entre a música e a religião, um parentesco íntimo. Em ambas o que vale é o que não se vê, o real é o que está acima dos nossos sentidos. O reino da religião não é o mundo físico: seu domínio começa justamente onde termina nossa capacidade de ver, de compreender e de sentir. A religião é uma linguagem além das palavras, uma ponte que nos liga ao mundo que nossos pés não podem atingir, mas onde a nossa alma se sente como em sua própria pátria. Música e religião representam um esforço no sentido do homem libertar-se do frio e imutável silencio que os cerca, de entrar em entendimento com os fantasmas que o rodeiam.

A música, como toda linguagem, é uma criação coletiva, uma convenção geralmente aceita. Onde cada qual inventa sua linguagem, ninguém se entende. Há sempre uma Torre de Babel no fim de toda cultura: o povo que deixa de ter uma linguagem o comum, deixa de ter, também, um mesmo destino. O Cristianismo foi a grande paixão do tempo de Bach. Ele é protestante no exato sentido de Lutero: o seu desejo era o retorno a verdadeira doutrina de Cristo, isenta das adaptações e das interpretações dos padres. A sua música fixa e exalta de tal forma esse sentimento que dá a impressão de uma longa prece, que sobe aos Céus e vai até os pés de Deus. A linguagem de Bach alcançou uma significação universal porque é a expressão do anseio e da esperança do imutável coração humano. Não apenas as suas energias, mas todas as forças espirituais do seu tempo se reuniram em torno da criação do seu estilo – esse majestoso e imponente barroco, tão propício à fixação das altas e luminosas visões do espírito. Foi nesse estilo, no estilo de suas cantatas, que o Aleijadinho plasmou, nas nossas igrejas, a mensagem mais alta da sua sensibilidade, inspirada no mesmo espírito cristão, feito de compreensão e bondade. O barroco não é uma linguagem para as idéias comuns, para a descolorida existência de cada dia. Não é um estilo para a construção de choupanas, mas de palácios e catedrais. A sua base é a valorização do espírito, do conteúdo. A idéia deve ser tão densa, tão violentamente presente, que força a matéria e a subjuga. As estátuas barrocas são ta grávidas de espírito que chega a curvar-se ao seu peso. Os padres de Congonhas do Campo que se queixam de que os fiéis não podiam rezar diante dos Profetas do Aleijadinho, pois o seu altar ameaçador lhes conturbava a alma, nela derramando a semente do temor. E os afrescos de Miguel Ângelo na Capela Sixtina tiravam àquele recanto, segundo alguns padres, acolhedor, pois perturbava mesmo os espíritos mais bem formados. Também as cantatas de Bach nos arrastam para um mundo de estranhas, majestosas e fantásticas visões. Bach levou o estilo barroco às ultimas conseqüências. A sua polifonia é tão intrincada, a floresta de sua música é tão densa, que os próprios contemporâneos não chegaram a perceber sua selvagem beleza. Ele é tão claro e ardente quanto o sol, que ninguém consegue fixar a olho descoberto. Foi necessário que a névoa do tempo se interpusesse entre ele e nós para podemos contemplar o seu fulgurante esplendor. Como o de Miguel Ângelo, o barroco de Bach é a vida em plenitude, a vida na sua impetuosidade de anseios, de beleza, de miséria e de infinita beleza. Não é uma arte para receio, mas para o trabalho, o duro do trabalho do espírito, uma convocação de todas as forças interiores. Bach sentiu a música como religião, como larga porta aberta para o infinito, através da qual é dada ao homem, para consolar-se de sua miséria e das suas fraquezas, comunicar-se com as forças superiores, o mundo dos seus anseios, a pátria das suas íntimas esperanças.

A música nada afirma e nada nega. Como a terra ela é fria, mas constitui a fonte de toda a vida. A Natureza, que a inventou, criou-a à semelhança das flores e das altas nuvens que passeiam pelo céu, por sobre os altos cumes. Na sua mudez ela fala mais do que as palavras, diz melhor do que a lágrima e o sorriso. É ouvindo uma cantata de Bach que somos tocados pela compreensão de nossa presença no mundo e do sentido do nosso destino. Fomos feitos, como os pássaros, para alegrar a perene festa da vida e, como as flores, para enfeitar os berços e os túmulos. A nossa missão é cantar, como os regatos, a doce melodia interior e refletir, o mistério lado de nossa alma, a longínqua e solitária luz das estrelas. A música de Bach é uma versão universalizada do Cristianismo: um cristianismo para todos os homens, mesmo os que não crêem. O seu mais alto desejo foi chegar a Deus. E conseguiu esse intento libertando-se de toda contingência humana. No fim seremos o que fomos no primeiro dia. Esquecido das palavras e desprezando o ensinamento dos mestres, Bach buscou traduzir em música o sentimento do mundo. E o fez com tanta força e sinceridade, que é, ainda hoje, através dessa sua milagrosa escada que podemos chegar ao Céu e falar com Deus.

Nada nos dá uma idéia mais verdadeira do destino humano que a música. O seu denso mistério também é o nosso; o seu mundo de sugestões é o mesmo que existe em nossa alma; a sua espantosa beleza é a que se abre aos nossos olhos como uma visão; o seu encantamento é a mesma sedução que nos prende, como folhas batidas pela fúria da tempestade à frágil haste da vida.

Não se pode dizer que Bach foi o maior dos músicos, porque não há fita métrica para medir o gênio. E como as árvores, os homens devem ser avaliados, não pela sua aparência, mas pelas raízes que tem sobre a terra. Essas raízes são o sustentáculo contra o vendaval do tempo, que tudo leva de roldão. Nesse sentido Bach dispõe de uma situação privilegiada. A sua fortaleza é uma glória inexpugnável. Não é que não tenha defeitos. Como todo artista barroco, Bach é, muitas vezes, difícil, intrincado e obscuro. A críticas que, nesse sentido, lhe fez Scheibe, seu contemporâneo, são precedentes, apesar de exageradas. Já no fim da vida Bach assistiu a vitória do estilo que desbancara o seu, e de que havia sido a mais alta e nobre expressão, baseado nos recursos do contraponto e da fuga, e a cujos cultores se referia ironicamente Telemann, vendo neles “velhos que contraponteiam indefinidamente, mas que são desprovidos de capacidade de invenção e escrevem a quinze ou vinte vozes obrigadas, e em que o próprio Diógenes, com sua lanterna, não encontraria uma gota de melodia.”

Bach é denso e impenetrável como uma floresta tropical. Os que, no entanto se aventuram a enfrentar os perigos dessa selva, descobrem nos eu interior maravilhosas estradas, calçadas de pedrarias raras e atapetadas de flores, que nos induzem a distantes e misteriosos países.

Os evangelistas procuraram, através de palavras, trazer até nos a lição de Cristo. Bach compreendeu o quão imperfeitamente foi cumprida essa missão. O espírito do Filho do Homem foi tão torcido, tão desvirtuado, traduzido de forma tão incompleta que, ao invés de semear a paz, a eles trouxe mais discórdias, mais desavenças e ódios maiores. Dispo-se, então, o compositor, a nos dar uma outra versão do ensinamento de Cristo. Na sua obra Jesus surge na sublime apoteose da pureza, como um igual dos homens, capaz de sentir as dores e alegrias, e, sobretudo, de a todos perdoar os pecados e as fraquezas, que são contingências de nossa natureza e símbolos do nosso nada. Desde o “Oratório de Natal” até as “Paixões”, Bach acompanha toda vida de Jesus. Nunca o espírito de Cristo foi tão bem fixado quanto na música. Esta se apresenta tão rica de conteúdo humano, de bondade e de perdão que dá a impressão de uma longa, iluminada e infinita benção que cai sobre todos os homens, indiferentes às suas crenças e aos seus preconceitos. A música é a linguagem absoluta. Ouvindo as “Paixões” de Bach, percebemos que o sacrifício de Jesus não é senão o símbolo da grande tragédia, de que somos todos mártires obscuros e inconscientes. A vida humana só tem sentido quando é a concretização de uma idéia. Só há verdadeira grandeza no destino que se realiza. A lição essencial de Cristo consiste na valorização do espírito, sem cuja presença nada tem sentido. Bach leva essas premissas às últimas conseqüências. A sua música é o Espírito Santo que desceu à terra e passou a habitar entre nós.

E através de Bach que entendemos o verdadeiro segredo da música. O homem é, no fundo, um animal irracional. A razão é, em nós, apenas a superfície. No nosso íntimo, conservamo-nos tão selvagens quanto os animais bravios, rudes como as cachoeiras que se lançam furiosa contra as abruptas pedras, e laboriosos como as sementes que se transformam em folhas, flores e frutos. Guardamos, no nosso mundo interior, ressonâncias vagas de quando morávamos no fundo do mar; do tempo em que perscrutávamos a selva e conhecíamos o seus avisos; das lutas pelo domínio da terra e de suas misteriosas forças. A música é uma evocação desses tempos em que não existiam nem palavras, nem razão. Uma linguagem tão nossa, tão familiar e acolhedora como um abraço de mãe. Sendo um produto do inconsciente, a ele se dirigindo, a música é intuitiva, independendo de aprendizado. E aquele que não tiver, no labirinto de sua alma, a fonte criadora. Inútil buscará o sucedâneo. A capacidade criadora nada tem a ver com a inteligência. Ela é uma ruminação interior, em cuja elaboração a nossa participação consciente é nula. A mais alta inteligência é capaz de produzir a menor obra de arte. Mas ao artista não compete apenas criar, mas fixar a criação. Bach compreendeu, como nenhum outro músico, a importância da técnica, que coloca o artista em situação de aproveitar, em plenitude, suas inspirações. Para ele, todo artista deve ser, um artesão, um profundo conhecedor do seu “métier”, cuja técnica precisa dominar completamente. Essa técnica deve ser adotada ao que tem de fixar. Nesse sentido, deu-nos impressionante lição de coragem ao desprezar as regras tradicionais que lhe impediram a livre expressões das idéias. A sua harmonia tem mais flexibilidade que a do seus contemporâneos adotando-se melhor ao seus fins. “Aparentemente” – nota Forkel o primeiro do seus biógrafos – “infringia com isso todas as regras tradicionais e tidas por sagradas em seu tempo, mas não as infringia de fato, pois realizava perfeitamente a finalidade dessas regras, que só podem ter por objeto a pureza da harmonia e da melodia, ou seja, das sucessivas e coexistente eufonias, embora o fizesse por caminhos insólitos”. As liberdades técnicas não eram ,aliás, raras na família Bach. Muito antes de Johann Sebastian, Johann Cristoph, organista da corte do município de Eisenach, escandalizou seus contemporâneos ao fazer uso, num motete de sua autoria, da sexta aumentada. As liberdades técnicas de Bach lhe trouxeram muitos dissabores. A 21 de fevereiro de 1706, por exemplo, quando era organista da Neue-Kirche, em Arnstadt, recebeu do Consistório séria advertência porque, até então, “havia feito, nos corais, muitas variações estranhas, misturando muitos tons alheios, tanto que a comunidade ficou confundida”. “Para o futuro – ordenava o consistório – deve se quiser introduzir um tonum peregrinum – permanecer no mesmo e não cair imediatamente em outra coisa, nem, como até agora tem feito, tocar um tonum contrarium”. O tonum peregrinum é, como se advinha, a modulação, e o tonum contrarium, a trova brusca de tonalidade. Também em Mülhlausen, Bach encontrou tal resistência à sua música que teve de deixar o posto de organista, que ocupou durante algum tempo. Justificando a deliberação de abandonar o cargo, confessou humildemente: “Tive sempre o pensamento de fazer progredir a música religiosa, para maior glória de Deus, mas não o tenho podido conseguir até o presente sem oposição”.

Durante toda a vida, Bach lutou contra essa incompreensão. Que acabou por amargar os seus dias, mas jamais lhe roubou a confiança em si mesmo.

O Barroco não se presta às confissões íntimas. O seu ambiente não é o das confissões, mas o dos feitos grandiosos e sublimes. Bach é um artista impessoal. Pouco ficamos sabendo dele através de sua obra. Ao contrário do românticos, que sempre falaram na primeira pessoa, usa, quando muito, a primeira do plural. Era a alma do seu tempo e do seu povo que se expressava na sua voz. Nunca ambicionou honrarias e glórias. Foi simples como todo aquele que tem real consciência da sua grandeza. Miguel Ângelo apenas assinou um dos seus trabalhos: a Pietà. Sentia que toda obra de arte é um produto da coletividade, do grupo humano, como a linguagem e os caminhos. Como o seu povo, Bach ambicionou servir a Deus. E foi esse o desejo que conduziu a sua música, por estradas iluminadas à mais sublime pureza. No “Orgelbüchlein”, em que reúne uma série de trabalhos compostos em Weimar, escreveu essa epígrafe:
“Para maior glória do Altíssimo
e melhor instrução do próximo”

E aos seus alunos da Escola de São Tomás ditou essa explicação do baixo cifrado: “O baixo cifrado é o mais perfeito fundamento da música, que a esquerda toca as notas indicadas, tomando a direita as consonâncias e dissonâncias, a fim de que surja uma agradável harmonia para a glória do Senhor e o prazer permitido à alma. Como a de toda música,a finalidade do baixo cifrado não deve ser outra senão a glória de Deus e a recreação da alma.

A música de Bach valorizava e purificava todos os temas. Em suas mãos os motivos mais comuns adquiriam brilho e o esplendor. Transformou, seguindo o exemplo de Lutero, canções licenciosas e picantes em corais piedosos, como veremos páginas adiante. Porém, mais extraordinário ainda é o fato de ter utilizado o tema da figura simbólica da sensualidade de “Hércules na Encruzilhada” na “Canção de Ninar”, com a qual a Virgem Maria, no “Oratório de Natal”, adormece o Menino Jesus. Ouvindo o “Oratório de Natal”, longe estamos de imaginar que se trata de simples colcha de retalhos: suas árias e coros, com apenas oito exceções, foram tirada das cantatas profanas “Lasst und sorgen”, “Tönet, ihr Pauken” e “Preise dein Glücke”, as quais, por sua vez, provavelmente, não foram escritas para libretos seculares. De tal maneira a música de Bach fixa a alegria da terra – dos homens simples e das almas puras, pela vinda do Salvador, que esse oratório continua ser o mais alto monumento musical sobre a Natividade. A música atinge, nele, a plenitude de humanidade e pureza.

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