sábado, 24 de março de 2012

Bach: o gênio da música que tocou os céus e os corações

BACH, O QUINTO EVANGELISTA
Celso Brant

INTRODUÇÃO

A música de Bach não é produto de um homem nem a obra de uma geração, mas o resultado de longo trabalho em comum. Alguns séculos de polifonia colocaram em suas mãos uma linguagem, um estilo e uma compreensão do mundo. Com esses elementos, já trabalhados por grandes e nobres espíritos, a sua missão ficou facilitada e não lhe foi difícil dar o melhor de si ao mundo. Fê-lo com a simplicidade e a humildade com que as árvores oferecem os seus frutos e os pássaros enriquecem a paisagem do amanhecer com os seus cantos. Teve mestres, é certo; mas entre o que os professores lhe ensinaram e o que nos ensinou a todos nós, seus alunos, há uma diferença maior que a existente entre a luz da vela e a do sol. Bach, como um demiurgo, tirou o seu mundo de si mesmo. O seu poder de criação era tal, que se diria ter nele se refugiado o “fiat” divino para poder ampliar as fronteiras do mundo.

Eisenach foi, bem a propósito, o seu berço natal. Ali, no castelo de Wartburg, algum tempo antes, Lutero havia se recolhido para traçar os planos da Reforma. Em tudo ainda sentia a lembrança de Santa Isabel, cuja virtude era, principalmente, um exemplo de amor à humanidade, pobre, infeliz e pecadora... O mesmo espírito que presidiu à Reforma foi o que deu vida e força à sua obra: a paixão pelo Cristianismo na pureza primitiva. Só quando o espírito de uma época se impregna de tal forma de um ideal que passa a tirar dele a sua seiva e sua vida, é que se torna possível o aparecimento de grandes obras de arte. Cria-se, assim, ao lado de uma linguagem comum, um mundo de anseios a serem expressados, definidos. O grande destino histórico de Bach foi oferecer-nos uma versão musical do Cristianismo. Os pintores do Renascimento, os seus escultores e arquitetos, cuidaram de fixar o espírito cristão em linhas, cores e volumes. Bach transformou o Cristianismo em som. E essa versão é, sem dúvida, a mais fiel, a mais pura e a mais profunda. Há, entre a música e a religião, um parentesco íntimo. Em ambas o que vale é o que não se vê, o real é o que está acima dos nossos sentidos. O reino da religião não é o mundo físico: seu domínio começa justamente onde termina nossa capacidade de ver, de compreender e de sentir. A religião é uma linguagem além das palavras, uma ponte que nos liga ao mundo que nossos pés não podem atingir, mas onde a nossa alma se sente como em sua própria pátria. Música e religião representam um esforço no sentido do homem libertar-se do frio e imutável silencio que os cerca, de entrar em entendimento com os fantasmas que o rodeiam.

A música, como toda linguagem, é uma criação coletiva, uma convenção geralmente aceita. Onde cada qual inventa sua linguagem, ninguém se entende. Há sempre uma Torre de Babel no fim de toda cultura: o povo que deixa de ter uma linguagem o comum, deixa de ter, também, um mesmo destino. O Cristianismo foi a grande paixão do tempo de Bach. Ele é protestante no exato sentido de Lutero: o seu desejo era o retorno a verdadeira doutrina de Cristo, isenta das adaptações e das interpretações dos padres. A sua música fixa e exalta de tal forma esse sentimento que dá a impressão de uma longa prece, que sobe aos Céus e vai até os pés de Deus. A linguagem de Bach alcançou uma significação universal porque é a expressão do anseio e da esperança do imutável coração humano. Não apenas as suas energias, mas todas as forças espirituais do seu tempo se reuniram em torno da criação do seu estilo – esse majestoso e imponente barroco, tão propício à fixação das altas e luminosas visões do espírito. Foi nesse estilo, no estilo de suas cantatas, que o Aleijadinho plasmou, nas nossas igrejas, a mensagem mais alta da sua sensibilidade, inspirada no mesmo espírito cristão, feito de compreensão e bondade. O barroco não é uma linguagem para as idéias comuns, para a descolorida existência de cada dia. Não é um estilo para a construção de choupanas, mas de palácios e catedrais. A sua base é a valorização do espírito, do conteúdo. A idéia deve ser tão densa, tão violentamente presente, que força a matéria e a subjuga. As estátuas barrocas são ta grávidas de espírito que chega a curvar-se ao seu peso. Os padres de Congonhas do Campo que se queixam de que os fiéis não podiam rezar diante dos Profetas do Aleijadinho, pois o seu altar ameaçador lhes conturbava a alma, nela derramando a semente do temor. E os afrescos de Miguel Ângelo na Capela Sixtina tiravam àquele recanto, segundo alguns padres, acolhedor, pois perturbava mesmo os espíritos mais bem formados. Também as cantatas de Bach nos arrastam para um mundo de estranhas, majestosas e fantásticas visões. Bach levou o estilo barroco às ultimas conseqüências. A sua polifonia é tão intrincada, a floresta de sua música é tão densa, que os próprios contemporâneos não chegaram a perceber sua selvagem beleza. Ele é tão claro e ardente quanto o sol, que ninguém consegue fixar a olho descoberto. Foi necessário que a névoa do tempo se interpusesse entre ele e nós para podemos contemplar o seu fulgurante esplendor. Como o de Miguel Ângelo, o barroco de Bach é a vida em plenitude, a vida na sua impetuosidade de anseios, de beleza, de miséria e de infinita beleza. Não é uma arte para receio, mas para o trabalho, o duro do trabalho do espírito, uma convocação de todas as forças interiores. Bach sentiu a música como religião, como larga porta aberta para o infinito, através da qual é dada ao homem, para consolar-se de sua miséria e das suas fraquezas, comunicar-se com as forças superiores, o mundo dos seus anseios, a pátria das suas íntimas esperanças.

A música nada afirma e nada nega. Como a terra ela é fria, mas constitui a fonte de toda a vida. A Natureza, que a inventou, criou-a à semelhança das flores e das altas nuvens que passeiam pelo céu, por sobre os altos cumes. Na sua mudez ela fala mais do que as palavras, diz melhor do que a lágrima e o sorriso. É ouvindo uma cantata de Bach que somos tocados pela compreensão de nossa presença no mundo e do sentido do nosso destino. Fomos feitos, como os pássaros, para alegrar a perene festa da vida e, como as flores, para enfeitar os berços e os túmulos. A nossa missão é cantar, como os regatos, a doce melodia interior e refletir, o mistério lado de nossa alma, a longínqua e solitária luz das estrelas. A música de Bach é uma versão universalizada do Cristianismo: um cristianismo para todos os homens, mesmo os que não crêem. O seu mais alto desejo foi chegar a Deus. E conseguiu esse intento libertando-se de toda contingência humana. No fim seremos o que fomos no primeiro dia. Esquecido das palavras e desprezando o ensinamento dos mestres, Bach buscou traduzir em música o sentimento do mundo. E o fez com tanta força e sinceridade, que é, ainda hoje, através dessa sua milagrosa escada que podemos chegar ao Céu e falar com Deus.

Nada nos dá uma idéia mais verdadeira do destino humano que a música. O seu denso mistério também é o nosso; o seu mundo de sugestões é o mesmo que existe em nossa alma; a sua espantosa beleza é a que se abre aos nossos olhos como uma visão; o seu encantamento é a mesma sedução que nos prende, como folhas batidas pela fúria da tempestade à frágil haste da vida.

Não se pode dizer que Bach foi o maior dos músicos, porque não há fita métrica para medir o gênio. E como as árvores, os homens devem ser avaliados, não pela sua aparência, mas pelas raízes que tem sobre a terra. Essas raízes são o sustentáculo contra o vendaval do tempo, que tudo leva de roldão. Nesse sentido Bach dispõe de uma situação privilegiada. A sua fortaleza é uma glória inexpugnável. Não é que não tenha defeitos. Como todo artista barroco, Bach é, muitas vezes, difícil, intrincado e obscuro. A críticas que, nesse sentido, lhe fez Scheibe, seu contemporâneo, são precedentes, apesar de exageradas. Já no fim da vida Bach assistiu a vitória do estilo que desbancara o seu, e de que havia sido a mais alta e nobre expressão, baseado nos recursos do contraponto e da fuga, e a cujos cultores se referia ironicamente Telemann, vendo neles “velhos que contraponteiam indefinidamente, mas que são desprovidos de capacidade de invenção e escrevem a quinze ou vinte vozes obrigadas, e em que o próprio Diógenes, com sua lanterna, não encontraria uma gota de melodia.”

Bach é denso e impenetrável como uma floresta tropical. Os que, no entanto se aventuram a enfrentar os perigos dessa selva, descobrem nos eu interior maravilhosas estradas, calçadas de pedrarias raras e atapetadas de flores, que nos induzem a distantes e misteriosos países.

Os evangelistas procuraram, através de palavras, trazer até nos a lição de Cristo. Bach compreendeu o quão imperfeitamente foi cumprida essa missão. O espírito do Filho do Homem foi tão torcido, tão desvirtuado, traduzido de forma tão incompleta que, ao invés de semear a paz, a eles trouxe mais discórdias, mais desavenças e ódios maiores. Dispo-se, então, o compositor, a nos dar uma outra versão do ensinamento de Cristo. Na sua obra Jesus surge na sublime apoteose da pureza, como um igual dos homens, capaz de sentir as dores e alegrias, e, sobretudo, de a todos perdoar os pecados e as fraquezas, que são contingências de nossa natureza e símbolos do nosso nada. Desde o “Oratório de Natal” até as “Paixões”, Bach acompanha toda vida de Jesus. Nunca o espírito de Cristo foi tão bem fixado quanto na música. Esta se apresenta tão rica de conteúdo humano, de bondade e de perdão que dá a impressão de uma longa, iluminada e infinita benção que cai sobre todos os homens, indiferentes às suas crenças e aos seus preconceitos. A música é a linguagem absoluta. Ouvindo as “Paixões” de Bach, percebemos que o sacrifício de Jesus não é senão o símbolo da grande tragédia, de que somos todos mártires obscuros e inconscientes. A vida humana só tem sentido quando é a concretização de uma idéia. Só há verdadeira grandeza no destino que se realiza. A lição essencial de Cristo consiste na valorização do espírito, sem cuja presença nada tem sentido. Bach leva essas premissas às últimas conseqüências. A sua música é o Espírito Santo que desceu à terra e passou a habitar entre nós.

E através de Bach que entendemos o verdadeiro segredo da música. O homem é, no fundo, um animal irracional. A razão é, em nós, apenas a superfície. No nosso íntimo, conservamo-nos tão selvagens quanto os animais bravios, rudes como as cachoeiras que se lançam furiosa contra as abruptas pedras, e laboriosos como as sementes que se transformam em folhas, flores e frutos. Guardamos, no nosso mundo interior, ressonâncias vagas de quando morávamos no fundo do mar; do tempo em que perscrutávamos a selva e conhecíamos o seus avisos; das lutas pelo domínio da terra e de suas misteriosas forças. A música é uma evocação desses tempos em que não existiam nem palavras, nem razão. Uma linguagem tão nossa, tão familiar e acolhedora como um abraço de mãe. Sendo um produto do inconsciente, a ele se dirigindo, a música é intuitiva, independendo de aprendizado. E aquele que não tiver, no labirinto de sua alma, a fonte criadora. Inútil buscará o sucedâneo. A capacidade criadora nada tem a ver com a inteligência. Ela é uma ruminação interior, em cuja elaboração a nossa participação consciente é nula. A mais alta inteligência é capaz de produzir a menor obra de arte. Mas ao artista não compete apenas criar, mas fixar a criação. Bach compreendeu, como nenhum outro músico, a importância da técnica, que coloca o artista em situação de aproveitar, em plenitude, suas inspirações. Para ele, todo artista deve ser, um artesão, um profundo conhecedor do seu “métier”, cuja técnica precisa dominar completamente. Essa técnica deve ser adotada ao que tem de fixar. Nesse sentido, deu-nos impressionante lição de coragem ao desprezar as regras tradicionais que lhe impediram a livre expressões das idéias. A sua harmonia tem mais flexibilidade que a do seus contemporâneos adotando-se melhor ao seus fins. “Aparentemente” – nota Forkel o primeiro do seus biógrafos – “infringia com isso todas as regras tradicionais e tidas por sagradas em seu tempo, mas não as infringia de fato, pois realizava perfeitamente a finalidade dessas regras, que só podem ter por objeto a pureza da harmonia e da melodia, ou seja, das sucessivas e coexistente eufonias, embora o fizesse por caminhos insólitos”. As liberdades técnicas não eram ,aliás, raras na família Bach. Muito antes de Johann Sebastian, Johann Cristoph, organista da corte do município de Eisenach, escandalizou seus contemporâneos ao fazer uso, num motete de sua autoria, da sexta aumentada. As liberdades técnicas de Bach lhe trouxeram muitos dissabores. A 21 de fevereiro de 1706, por exemplo, quando era organista da Neue-Kirche, em Arnstadt, recebeu do Consistório séria advertência porque, até então, “havia feito, nos corais, muitas variações estranhas, misturando muitos tons alheios, tanto que a comunidade ficou confundida”. “Para o futuro – ordenava o consistório – deve se quiser introduzir um tonum peregrinum – permanecer no mesmo e não cair imediatamente em outra coisa, nem, como até agora tem feito, tocar um tonum contrarium”. O tonum peregrinum é, como se advinha, a modulação, e o tonum contrarium, a trova brusca de tonalidade. Também em Mülhlausen, Bach encontrou tal resistência à sua música que teve de deixar o posto de organista, que ocupou durante algum tempo. Justificando a deliberação de abandonar o cargo, confessou humildemente: “Tive sempre o pensamento de fazer progredir a música religiosa, para maior glória de Deus, mas não o tenho podido conseguir até o presente sem oposição”.

Durante toda a vida, Bach lutou contra essa incompreensão. Que acabou por amargar os seus dias, mas jamais lhe roubou a confiança em si mesmo.

O Barroco não se presta às confissões íntimas. O seu ambiente não é o das confissões, mas o dos feitos grandiosos e sublimes. Bach é um artista impessoal. Pouco ficamos sabendo dele através de sua obra. Ao contrário do românticos, que sempre falaram na primeira pessoa, usa, quando muito, a primeira do plural. Era a alma do seu tempo e do seu povo que se expressava na sua voz. Nunca ambicionou honrarias e glórias. Foi simples como todo aquele que tem real consciência da sua grandeza. Miguel Ângelo apenas assinou um dos seus trabalhos: a Pietà. Sentia que toda obra de arte é um produto da coletividade, do grupo humano, como a linguagem e os caminhos. Como o seu povo, Bach ambicionou servir a Deus. E foi esse o desejo que conduziu a sua música, por estradas iluminadas à mais sublime pureza. No “Orgelbüchlein”, em que reúne uma série de trabalhos compostos em Weimar, escreveu essa epígrafe:
“Para maior glória do Altíssimo
e melhor instrução do próximo”

E aos seus alunos da Escola de São Tomás ditou essa explicação do baixo cifrado: “O baixo cifrado é o mais perfeito fundamento da música, que a esquerda toca as notas indicadas, tomando a direita as consonâncias e dissonâncias, a fim de que surja uma agradável harmonia para a glória do Senhor e o prazer permitido à alma. Como a de toda música,a finalidade do baixo cifrado não deve ser outra senão a glória de Deus e a recreação da alma.

A música de Bach valorizava e purificava todos os temas. Em suas mãos os motivos mais comuns adquiriam brilho e o esplendor. Transformou, seguindo o exemplo de Lutero, canções licenciosas e picantes em corais piedosos, como veremos páginas adiante. Porém, mais extraordinário ainda é o fato de ter utilizado o tema da figura simbólica da sensualidade de “Hércules na Encruzilhada” na “Canção de Ninar”, com a qual a Virgem Maria, no “Oratório de Natal”, adormece o Menino Jesus. Ouvindo o “Oratório de Natal”, longe estamos de imaginar que se trata de simples colcha de retalhos: suas árias e coros, com apenas oito exceções, foram tirada das cantatas profanas “Lasst und sorgen”, “Tönet, ihr Pauken” e “Preise dein Glücke”, as quais, por sua vez, provavelmente, não foram escritas para libretos seculares. De tal maneira a música de Bach fixa a alegria da terra – dos homens simples e das almas puras, pela vinda do Salvador, que esse oratório continua ser o mais alto monumento musical sobre a Natividade. A música atinge, nele, a plenitude de humanidade e pureza.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O SER HUMANO MASSIFICADO

Uma das grandes contradições da sociedade contemporânea consiste no fato de que a revolução tecnológica colocou nas mãos do ser humano meios de comunicação cada vez mais sofisticados (redes de computadores, telefones celulares, etc.), mas isso não tem contribuído para o enriquecimento dos contatos sociais e das relações humanas. Pelo contrário, tem acentuado a tendência à solidão. Essa contradição é aqui analisada por Delfim Soares.

O maior instrumento da globalização cultural na sociedade tecnológica tem sido certamente a expansão das redes de comunicação de massa. A abrangência, extensão e eficácia dessas redes estão na raiz das grandes transformações ocorridas na virada do século XX. A redução do planeta a uma aldeia produziu uma verdadeira revolução espaço temporal.
O convívio humano que resulta de contatos primários é a característica dominante das sociedades pouco industrializadas, das zonas rurais ou de pequenos grupos sociais. A industrialização e a urbanização estabeleceram um modo de vida no qual o contato primário, interpessoal, foi reduzido, favorecendo a generalização dos contatos secundários e das relações impessoais.
Observa-se, assim, uma tendência inversa entre a formação das grandes aglomerados populacionais e o convívio humano. A instauração da sociedade de massa se constituiu num marco decisivo para o surgimento de um ser humano massificado.
Nesse modelo social, o ser humano deixa de ser considerado pessoa e passa a ser encarado como máquina devoradora de produtos, ideais ou mercadorias. Não se consideram valores pessoais ou anseios individuais. Por um processo de condicionamento gradual irreversível, vão sendo determinados seus anseios, de acordo com as necessidades de reprodução do sistema. Sua personalidade vai se transformando e seu comportamento se adaptando no sentido de atender aos objetivos dessa nova ordem. O ser humano deixa de ser um indivíduo e passa a ser apenas uma entidade numérica, parte de uma engrenagem, da qual é um simples objeto.
A complexidade urbana, generalização do anonimato, o surgimento da selva de pedra e a massificação são alguns dos fatores que contribuem para a despersonificação dos indivíduos. Na sociedade pós-industrial, o contato geral entre as pessoas é apenas físico, o significado das interações sociais fica reduzido a seus papéis sociais formais e suas funções profissionais. À medida que os contatos meramente formais se generalizam, expande-se o anonimato.
O homem vive no meio da multidão, mas não convive com ninguém, como pessoa, a multidão nas ruas, o congestionamento no trânsito, a moradia em apartamentos superpostos, as turbas nos estágios esportivos e os enxames humanos nas praias são manifestações sociais freqüentes. Nelas, raramente se verifica convívio humano, mesmo as relações mais íntimas são, muitas vezes, mero contato de objetos humanos e não relações interpessoais. Os indivíduos não se encaram mais como pessoas, mas como objetos. Nesse contexto, cresce a sensação de solidão.


                                       Adaptado de: SOARES, Delfim. Contratempo, agosto de 2002.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A estrela e o Rochedo


O filme “O Rochedo e a Estrela” é um documentário que aborda a expansão do judaísmo em Pernambuco, no século 17. O filme enfoca principalmente o período holandês e como Mauricio de Nassau favoreceu a liberdade religiosa, o que permitiu a existência de uma comunidade judaica e a fundação, no Recife - Pernambuco, da primeira sinagoga das Américas, a Zur Israel.

Judeus em Natal: o pioneirismo da família Palatnik



 A história dos judeus na cidade começou a ser escrita no ano de 1912, com a chegada de quatro irmãos e um tio que deixaram a Ucrânia em direção ao Brasil. Antes de se estabelecer na capital Potiguar, essa família passou por algumas experiências em outras cidades. O Rio de Janeiro foi a primeira escala na rota, mas correligionários que viviam em Salvador dissuadiram o primeiro dos jovens, Tobias Palatnik, e o introduziram no ofício a que se dedicavam os judeus que aportavam no Brasil: a mascateação. A experiência vivenciada em Salvador não foi uma das melhores. A topografia da cidade, com suas inúmeras ladeiras, fizeram com que os irmãos desistissem do lugar e resolvessem deixar a capital baiana com destino à cidade do Recife. Nas ruas planas da cidade do Recife os irmãos Palatnik começaram a fazer sua clientela, em grande parte composta por operários fabris. Nesta cidade aprenderam que além do comércio realizado porta a porta, eles podiam comprar no atacado e com exclusividade. A cambraia bordada tornou-se o principal produto para eles, pois os lucros que ela oferecia eram bem maiores do que os dos demais tecidos.

A permanência na cidade do Recife também não demorou muito. Depois de apenas três meses estabelecido na capital Pernambucana e falando o português ainda de forma rudimentar, Tobias Palatnik, o mais velho dos quatros irmãos, resolveu transferir-se para Natal, objetivando assim escapar da concorrência comercial em Recife, que contava naquele período com 80 judeus prestamistas, em sua maioria rapazes solteiros provenientes da Bessarábia, Polônia e Ucrânia, para poder concretizar o objetivo que trouxeram juntos como irmãos, ou seja, o desejo deles era conseguir meios para poder se estabelecer na Palestina com os demais familiares que deixaram a Ucrânia e seguiram para lá, e ali desenvolver uma lavoura (ROZENCHAN, 2000). 

Os planos traçados por esses judeus foram aos poucos assumindo outras configurações. Assim como os outros imigrantes, eles tiveram que superar a depressão causada pelo novo ofício e esquecer o orgulho pessoal. Perceberam que a oportunidade que se apresentava era boa e o lucro era certo, desde que investissem na nova vida e se adaptassem ao país. Na busca por (re)construir suas vidas de maneira digna no novo espaço apresentado, esses irmãos não mediram esforços para se adequar. A primeira grande barreira que necessitava  ser rompida era a língua; por isso, a leitura noturna do jornal em Português, incompreensível, acabou fazendo parte desse aprendizado e encerrava o dia de trabalho que  iniciava às sete da manhã, sustentados apenas por sanduíches de queijo, sardinhas em lata, pão, frutas e guaraná.

Ansioso por conquistar um espaço econômico menos concorrido, Tobias Palatnik não hesitou em mudar de cidade.  A saída do Recife em direção à pequena capital do Rio Grande do Norte ocorreu no ano de 1912. A escolha por Natal, segundo Tobias Palatnik, deveu-se à Divina Providência. Ao vender um chapéu Panamá a um professor em Recife, Tobias olhou para um mapa que estava pendurado na parede da sala, onde se destacava a estrada de ferro que ligava a capital pernambucana às demais cidades. Ele voltou os olhos para o extremo Norte e viu a cidade de Natal, e não se intimidou, pedindo logo informações a respeito dessa cidade. Tobias nunca soube responder o motivo que o levou a mover os olhos em direção à cidade do Natal, a única coisa que ele tinha a certeza é que seu olhar o conduziu para o espaço certo onde ele teria condições de (re)construir a sua vida e a vida de seus familiares. Tobias só não imaginava que ele seria o protagonista e um dos principais mentores da construção da história de uma comunidade judaica singular (ROZENCHAN, 2000).

A escolha de pegar o trem e seguir em direção a Natal foi a melhor decisão que Tobias tomou quando chegou ao Brasil. Natal ainda era uma cidade pequena, que estava começando a passar por transformações. A cidade contava naquele período com 23 mil habitantes e havia apenas 27 famílias estrangeiras. Como tivemos oportunidade de mostrar anteriormente, Natal possuía três linhas de bondes elétricos, uma catedral e um cinema mudo, ou seja, era uma cidade que estava aos poucos desabrochando e vivenciando o início da modernidade tão desejada pela elite local. Tobias Palatnik se deparou com um espaço que estava pronto para ser explorado; por isso, não hesitou em introduzir a venda a prestação na cidade. Percebendo que a oportunidade comercial era bem melhor que a do Recife, devido à concorrência que se encontrava na capital pernambucana, seus irmãos resolveram seguir em direção a Natal e começar ali um novo investimento. Foram os irmãos Palatnik que trouxeram para a cidade uma nova maneira de comercializar. Os produtos eram oferecidos de porta em porta e assim, laços econômicos eram estabelecidos, pois mensalmente os irmãos passavam nas casas dos clientes que adquiriam as mercadorias para receber a parcela do pagamento do produto que havia sido vendido. Esse tipo de procedimento tornava a relação entre comerciante e cliente mais estreita, fazendo com que os anseios de consumos da sociedade local fossem supridos de maneira pessoal.

Assim que Tobias Palatnik chegou a Natal, logo na primeira investida pôde perceber que só no bairro das Rocas, um dos mais modestos da cidade, poderia conquistar 200 clientes. O desejo de trabalhar e de prosperar fez com que seus objetivos fossem alcançados e em menos de seis meses na cidade, os irmãos Palatnik conseguiram conquistar cerca de 1000 clientes.

Jornal "A República" 1924

A prosperidade econômica proporcionou aos irmãos a realização de um sonho: em 1915 os Palatnik puderam adquirir uma fazenda agrícola com uma usina de açúcar, álcool e aguardente. Não demorou muito para que fossem acrescentados aos seus negócios sítios e plantações de laranjas e coqueiros, revelando assim a predisposição que a família tinha para o trabalho agrícola, já que seu avô sempre trabalhou com agricultura.

A tão esperada ligação com o solo ocorreu, mas não demorou muito para que os irmãos deixassem o investimento, pois não estavam preparados para enfrentar os ladrões que roubavam a produção na calada da noite. Resolveram dedicar-se exclusivamente ao comércio, e foi com ele que a família Palatnik escreveu uma história de prosperidade na cidade que até hoje é contada pelos filhos da geração que teve a oportunidade de conviver com eles.

Com a estruturação e o crescimento econômico da família Palatnik em Natal, esses jovens tiveram a oportunidade de ir à Palestina visitar seus pais e suas irmãs algumas vezes. Nessas poucas visitas que fizeram, os mancebos aproveitaram a oportunidade para constituir suas famílias com as jovens judias amigas de suas irmãs ou outras moças que residiam na “Terra Santa”. Os casamentos dos mancebos foram feitos de acordo com a lei e a tradição judaica (WOLFF, 1984).


A sacralização para a formação de uma família pode ser notadamente observada entre esses judeus. A escolha do cônjuge que professasse a mesma fé e que tivesse os mesmos conceitos e valores era um dos elementos essenciais para esses jovens. Manter uma identidade judaica em seus lares era o objetivo dos irmãos Palatnik. A prova disso é que eles foram buscar na Palestina moças que estavam dentro dessa normalização identitária.  A normalização é um dos processos mais sutis através dos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Mas, o quê isso significa? Normalizar significa eleger uma identidade especifica, no caso aqui observado, uma identidade judaica, como parâmetro em relação às outras identidades, que são avaliadas e hierarquizadas. Mesmo construindo as suas vidas na cidade do Natal, esse novo espaço não poderia oferecer a eles alguns elementos responsáveis pela continuidade de sua identidade.

Os jovens judeus conseguiram se relacionar muito bem com a sociedade local, mas as diferenças identitárias entre eles constituíam uma realidade cuja ponte de ligação, em alguns setores da vida privada judaica, não teria como ser feita; necessitava, portanto, ser diferenciada. O casamento, por exemplo, representa muito bem como essa delimitação de não-envolvimento com o diferente, que foi feita pelos irmãos Palatnik.

Dividir o mundo social entre “nós” e “eles” estava presente em boa parte de suas práticas culturais e religiosas, e nessa divisão podemos observar notadamente o processo de classificação que eles faziam.  Essa classificação pode ser entendida como o ato de significação pelo qual se divide e se ordena o mundo social, e ela foi feita a partir do ponto de vista de sua identidade. Segundo Tomaz Silva, dividir e classificar significa hierarquizar, atribuindo valores diante dessas escolhas.

O casamento seria um instrumento de continuidade de uma identidade judaica, e como estabelecê-lo com moças que tinham práticas culturais tão diferentes das deles?  Para que essa continuidade judaica fosse mantida era necessário atribuir a identidade à normalização, onde todas as características positivas possíveis em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. Segundo Silva (2000), a identidade normal é natural, desejável, única e estabilizadora, e era exatamente isso que eles estavam buscando ao constituírem suas famílias.  

O primeiro a se casar foi o primogênito dos irmãos, Tobias Palatnik, com Olga, no ano de 1920. Dois anos depois, os irmãos Adolfo e José Palatnik casaram com Cipora e Sônia no dia 18 de janeiro de 1922, em um casamento duplo cuja cerimônia e festa ficou marcado na história desses jovens. Os recém-casados voltaram para o Brasil via Marselha na França, em um navio chamado “Formosa”, mas a lua de mel eles decidiram passaram no Rio de Janeiro e só depois seguiram para Natal. A Sra. Sônia chegou a afirmar que nunca irá esquecer a reação e o encantamento que ela teve ao chegar ao Rio de Janeiro, e que as suas primeiras palavras em relação ao Brasil foram: “Que país bonito!”. A capital Potiguar constituiu o espaço que esses judeus acabaram escolhendo para estabelecer as suas famílias, até porque os projetos econômicos que os irmãos vinham realizando na cidade estavam crescendo, proporcionando a eles estabilidade financeira.

Jacob Palatnik seguiu os passos dos outros irmãos casando-se com Dora, uma jovem da Palestina, o que fez aumentar a quantidade de pessoas de origem semita na cidade do Natal. Com o estabelecimento dessas alianças, alguns familiares das moças judias foram atraídos para cidade, gerando assim, uma ramificação de parentesco considerável da família Palatnik.

Com esses casamentos, muitos outros familiares, entre eles primos, irmãos, pais, tios e outros membros, decidiram deixar seus países e foram atraídos para a capital potiguar. Em uma carta escrita por uma judia que nasceu em Natal, a Sra. Ana Mazur Spira, para o casal Frieda e Egon Wolff, Dona Ana Mazur demonstra as ramificações e os parentescos que a família Palatnik chegou a ter na cidade.

Essas ramificações e parentescos foram os elementos principais para que a família Palatnik se destacasse, tornando-se os membros principais para o estabelecimento de uma comunidade judaica na cidade, pois o número de pessoas que gravitavam em torno deles crescia com o passar dos anos através das redes de solidariedades que cada vez mais atraíam os familiares e consequentemente, os familiares dos familiares. Dona Sônia, esposa de José Palatnik, por exemplo, foi responsável por trazer da Palestina um ano depois de sua chegada a Natal, membros da sua família, como afirma Wolff.
           
As redes de solidariedade foram instrumentos importantes para a entrada de outros semitas em Natal. Essa prática de ajuda tornou-se algo constante e comum entre os judeus potiguares. Os primeiros que iam chegando procuravam logo se estabelecer para abrir as portas para os familiares e amigos que ficaram em outros países, e que por motivos de perseguição ou de dificuldades econômicas acabavam tomando a decisão de deixar esses espaços. 

Um dos membros da família Palatnik que vivenciou a experiência de deixar os familiares até poder fixar-se no Brasil foi Brás Palatnik. Quando resolveu imigrar juntamente com seus quatro sobrinhos para o país, teve que deixar na Rússia sua esposa e filhos até poder encontrar um espaço onde pudessem (re)construir as suas vidas. Porém, quando isso aconteceu, ele não pôde trazer sua esposa e seus filhos. A Primeira Guerra Mundial os impediu de viajar, fazendo com que essa família ficasse por mais um tempo separada. O encontro em Natal com sua esposa Rivca e com seus filhos: Augusta, Feiga e Horácio só foi possível com o término da Guerra e fim das convulsões internas pelas quais a Rússia estava enfrentando com a Revolução Comunista. 

Brás, assim como os sobrinhos, teve como destino a cidade do Rio de Janeiro, mas foi em Salvador onde esse judeu viveu e teve a oportunidade de fixar-se montando, por sugestão de outros israelitas da Ucrânia, um restaurante de comida iídiche. Mesmo contando com a presença de israelitas e de outros fregueses que eram convidados a experimentar as iguarias em seu restaurante, o investimento no ramo de alimentação não deu certo, fazendo com esse judeu pensasse em outra atividade que pudesse ser lucrativa. Diante do desafio de novas perspectivas econômicas, Brás resolveu mudar não apenas de rumo, mas de cidade, seguindo para Aracaju onde trabalhou como mascate, mas também não obteve sucesso nessa pequena cidade. Recife se apresentava como um espaço de oportunidade, afinal, a capital pernambucana já havia atraído muitos judeus, muitos dos quais já estavam estruturados como prestamistas; por isso, ele não hesitou e mudou-se para capital pernambucana. Mas sua permanência na cidade foi bastante curta. Brás resolveu juntar-se aos seus quatros sobrinhos que já estavam estabelecidos em Natal, e na capital Potiguar ele teve a oportunidade de crescer e prosperar economicamente.

Com o crescimento econômico, vieram as condições para que outros membros da família pudessem se juntar aos Palatnik. Em 1921 Moisés Kaller, marido de Tova, uma das irmãs dos quatro Palatnik deixou, juntamente com sua esposa, a Palestina e imigrou para Natal. A coletividade judaica aumentaria com a chegada dos sobrinhos de Rivca (Gandelsman[1]) Palatnik, esposa de Brás, que se estabeleceram no mesmo período na capital Potiguar: Isaac, Jaime e Leônidas Gandelsman, e em 1925, um outro sobrinho chamado Tobias Prinzac.

Para aumentar o número de parentes que faziam parte do clã dos Palatnik, mais um sobrinho, Josué Palatnik, da família de Brás Palatnik. Um ano depois da chegada do mancebo, em 1927, seus pais Elias e Raquel, e sua irmã Ester Palatnik, resolveram imigrar e se estabelecer em Natal. Com o passar dos anos, mais famílias eram atraídas por um espaço de segurança e de oportunidade econômica; por isso, o crescimento dessa família tornou-se inevitável, fosse pelo processo de imigração ou pelo crescimento natural, com o nascimento de seus filhos em terras potiguares (WOLFF, 1984)

Os parentes da família Palatnik em Natal não cresceram apenas por causa das redes de solidariedade, com a ajuda e auxílio no processo de imigração, mas por estabelecerem famílias, onde cada filho que nascia aumentava, naturalmente, o número de judeus na capital Potiguar, intensificando a necessidade de uma escola judaica. Na tabela abaixo podemos visualizar o crescimento da população israelita em Natal, o que gerou o aumento de suas práticas como Brit Milá, Bart Mitzvá, entre outras.

TABELA: Parentes da família Palatnik.


NOME DOS PAIS

FILHOS
Samuel e Chemda Blatman
Ziva (20.02.1928)
Carmela (19.11.1931)
Moisés e Tova Kaller
Sofia (17.05.1923)
Nechama (por volta de 1926)
Zev (1927)
Abraham e Sara Lipman
Isaac (31.03.1924)
Bracha (Berta 07.04.1935)
Naum e Hassiah Mazur
Simão (31.03.1924)
Achadam (por volta de 1927)
Ana (30.07.1928)
Adolfo e Cipora Palatnik
Eliachiv (04. 07.1923)
Nechama (09.08.1928)
Jacó e Dora Palatnik
Chimonit (26.07.1922)
Nehemias (1924)
Ruth (por volta de 1926)
José e Sônia Palatnik
Moisés (07.01.1923)
Nechama (29.04.1926)
Tobias e Olga Palatnik
Ester (07.03.1922)
Amidadav (29.06.1924)
Abraham (19.02.1928)
Tobias e Hana Prinzak
Moisés (02.08.1928).
Fonte: (WOLFF, 1984, p.36)

Parte das crianças que nasceram em Natal teve uma característica peculiar. A grande maioria recebeu nomes de origem hebraica, prenomes invulgares, geralmente não encontrados entre as demais crianças judias brasileiras. Podemos encontrar em Natal, por exemplo, nomes como Achadam, Aminadav, Chimonit, Eliachiv, entre outros. Essa característica ocorreu devido ao estreito relacionamento dos judeus natalenses com a Palestina, de onde veio grande parte deles. Os nomes colocados em seus filhos representariam uma ligação deles com seus parentes e com a Terra Santa?  O que se sabe é que a escolha da denominação da geração que nascia em Natal era algo singular e seus nomes, como símbolos, deveriam trazer consigo a informação de quem eram, de onde vieram, apontando para algo real.

Os nomes escolhidos por esses semitas representam claramente uma demarcação identitária, que indicava a condição judaica dos seus filhos em relação às outras crianças da cidade. Segundo Hall (2000), a identidade adquire um sentindo por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais é representada, e a representação atua simbolicamente para classificar o mundo e as nossas relações no seu interior. A escolha de nomes de origem judaica representaria esse sistema simbólico apresentado por Hall, ao fazer que esses nomes soassem de maneira diferenciada nos espaços sociais em Natal e permitindo que os judeus fossem rapidamente identificados através deles. A representação dos nomes judaicos serviria como instrumento de ligação com a família, com a sua origem e o seu espaço.


As crianças judias estariam carregando, através dos nomes, e de algumas práticas culturais, uma identidade que se apresentaria de maneira diferenciada em relação à sociedade local. Esses elementos identitários formariam a primeira base para a sua formação, fazendo com que as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, os fizessem se posicionar posteriormente como sujeitos conscientes de uma identidade judaica.

Luciana Stambonsky

A Companhia de Jesus no Brasil

A Companhia de Jesus no Brasil
Com os descobrimentos ultramarinos, a Igreja Católica do Renascimento estava demasiadamente imersa nos problemas seculares para promover uma expansão missionário tão grandiosa como a que se exigia. Tornava-se igualmente irrealizável deixar nas mãos dos colonos a conversão do gentio. Possibilidade que se aventou, mas que logo foi abandonada, uma vez que o trabalho apostólico, por mais que se quisesse, representava sempre uma limitação aos propósitos predatórios e mercantis daqueles que viam o indígena meramente como força de trabalho a ser explorada. Para isso desenvolviam as racionalizações mais arbitrárias. Basta-nos ver o exemplo de Cortês, que pedia ao imperador e ao papa o direito de castigar os da terra que não se submetiam, apresentando-os "como inimigos de nossa santa fé".
Teriam, portanto, que sair da Igreja os esforços para a difusão do Cristianismo no ultramar. Foram as ordens religiosas que se propuseram a esse movimento missionário. Coube à dos franciscanos a precedência sobre todas as outras. As notícias de muitos povos pagãos recém-descobertos despertaram o zelo apostólico entre os frades de toda a Europa, oferecendo-se numerosos deles para predicar o Evangelho aos indígenas. Acorreram à América espanhola imediatamente após a conquista do México e se estenderam a todo o império espanhol no Novo Mundo. Seguiram-se a eles os dominicanos, cuja obra missionária, inspirada num rigorismo ético, chocava-se com a resistência dos colonos espanhóis que se recusavam a ver outra possibilidade no indígena que não fosse a sua exploração no trabalho escravo. Já em 1511 abria-se o conflito entre missionários dominicanos e colonos, com um sermão pronunciado pelo dominicano Antônio de Montesinos. Tendia a missão, enquanto impulso expansivo da Igreja Católica, a exercer uma influência mais além do eclesiástico, atacando um sistema colonial fundado na superposição de uma camada de senhores e na exploração do indígena.
Não demorou para que alguns discípulos da Companhia de Jesus mostrassem grande interesse em serem enviados ao Novo Mundo. Não contaram, entretanto, com a aquiescência do Papa, a quem o fundador da Companhia havia jurado obediência absoluta. Consideravam-se mais necessários os trabalhos dos jesuítas dentro da própria Europa, onde tanto havia que fazer, como os teólogos mais qualificados da igreja, para deixá-los dispersarem-se pelas missões na conversão de infiéis. Somente por volta de 1565 vieram os primeiros jesuítas para a América espanhola, numa expedição orientada para combater os huguenotes franceses alojados na Flórida. "Se simplifica em demasia o fato histórico, quando se faz derivar exclusivamente da Contra-reforma a expansão mundial da Igreja Católica da Época Moderna, e igualmente quando se supõe que essa expansão foi desencadeado pelos jesuítas. A revivescência e ativação das forças missionários da cristandade ocorreram na Idade Média tardia, por obra das ordens mendicantes, e a reforma desses institutos monásticos, em fins do século XV e começos do século XVI, reavivou o ardor apostólico em suas comunidades. A Companhia de Jesus não só apareceu mais tarde, senão que primeiro teve que fortalecer-se internamente e superar fortes resistências do governo espanhol, antes de poder cumprir sua grande obra de evangelização ."
Em Portugal a Companhia de Jesus havia sido favorecido desde 1540, durante o reinado de D. João III, e graças a ele puderam os jesuítas estabelecer-se na América portuguesa sem encontrar os impedimentos colocados aos jesuítas espanhóis por Filipe 11 e pelo Conselho das Índias. Junto com o primeiro governador-geral vieram para o Brasil os primeiros jesuítas: os padres Manuel da Nóbrega, Leonardo Nunes, Antônio Pires, Aspicuela Navarro, Vicente Rodrigues e Diogo Jácome. Nóbrega, que viera à frente dos demais, tornou-se Provincial com a fundação da província jesuítica brasileira, em 1553. Apesar de não ter sido a primeira ordem a aqui se instalar (aos franciscanos coube também no Brasil essa precedência), tomou-se a mais importante e a que maior influência teve na vida colonial brasileira.
O Sentido das Missões e da Catequese - A ação da Contra-reforma na Europa revestiu-se de dois aspectos principais: procurou por um lado reconquistar pelas armas os territórios protestantes; e por outro, onde a vitória militar lhe permitia, procurou converter as massas protestantes por toda uma série de meios. Nesse segundo aspecto, visando a reconquistar as almas onde a situação política o permitia, a Igreja romana empregou os métodos mais diversos: multiplicou as dioceses, construiu ou reconstruiu igrejas, sobretudo criou seminários, universidades e colégios, utilizando o fanático devotamente das ordens religiosas. Foram os jesuítas e capuchinhos os agentes por excelência dessa reconquista.
Ligou-se a esse movimento um outro, que vinha há mais tempo, mas que ganhou novo ímpeto com a reação à Reforma protestante, que pretendia não só a cristianização dos povos do Novo Mundo, mas a "conquista dessas almas" para a Igreja Católica. Os propósitos confessionais das ordens religiosas que se dirigiam às terras descobertas eram impregnados de ambições políticas. Em nome de intenções piedosas compunha-se a luta pela restauração do poder político da Igreja de Roma, abalado pela Reforma. Trazer os povos das novas terras para o seio da Igreja Católica; impedir nelas a penetração das seitas "heréticas", dando-lhes combate e lançando as bases da Igreja romana; e mantendo a vigilância sobre os colonos de forma a que não se desgarrassem dos preceitos católicos, tais eram as funções outorgadas às ordens religiosas, particularmente à Campanha de Jesus.
Foi quanto ao primeiro particular, a catequese, que se revelou o maior conflito com os colonos. Para os jesuítas tanto tinha importância a conversão das almas quanto a utilização econômica daquela mão-de-obra disponível; ao passo que aos colonos não interessava mais que a exploração da força de trabalho indígena, sem que se interpusesse a isso o empecilho da catequização. O que propunham os jesuítas na verdade, ao mesmo tempo em que visavam realizar aqueles objetivos político-religiosos, era uma forma "mais racional" de colonização em confronto com uma atitude puramente predatória dos colonos, apesar de mais condizentes com os termos da política mercantil.
As missões geralmente acompanharam as migrações dos indígenas à medida que estes fugiam dos principais centros de colonização, tentando escapar da escravização a que os colonos os submetiam. Dessa forma fixaram-se principalmente no sertão, em regiões que não apresentavam atrativos de exploração imediata, o que não quer dizer que estivessem isentas de investidos, que não formassem elas mesmas um alvo de cobiça dos colonizadores, pela quantidade de índios domesticados que aldeavam. Seus principais redutos localizaram-se no deserto do norte do México, nas orlas da floresta amazônica e no interior da América do Sul. Pela forma com que se organizaram, evoluíram como economias voltadas para a produção de excedentes comercializáveis pelos religiosos. Vale a pena citar um trecho de um estudo recente sobre o assunto: "Este modo de produção subsiste teve uma gravitação decisiva na extensa região que atualmente compreende a República do Paraguai, grande parte das províncias argentinas de Missões, Corrientes, Santa Fé, Chaco e Formosa, o Estado brasileiro do Paraná e os departamentos de Artigas, Salto, Paissandu, Rio Negro e Tacuarembo na República Oriental do Uruguai.
Como se pode apreciar, a difusão geográfica deste modo de produção foi bastante ampla. Com relação a suas características geográficas, chegou a compreender, durante o século XVIII, a uns 130 000 indígenas, cifra muito alta se recordarmos as da população total da região."
Este modo de produção, chamado despótico-aldeão ou despótico-comunitário, teve como fenômeno fundamental a recriação por parte do branco de uma comunidade indígena organizada em "pueblos" (aldeias) tendo em vista uma exploração mais racional da mão-de-obra índia. "Neste tipo de organização econômica se notam as conseqüências, de um modo específico, do impacto conquistador-colonizador sobre a anterior estrutura produtiva indígena. O fato distintivo será a férrea condução dos sacerdotes jesuítas, a minuciosidade administrativa e organizativa da Companhia, mais o zelo que em todo momento pôs essa instituição para evitar todo contato entre suas reduções e os espanhóis. Isto permitiu que os "pueblos" funcionassem até à expulsão em 1768 , como unidades produtivas relativamente autárquicas, que, embora mantivessem certa comunicação entre si, viviam totalmente separadas do resto da sociedade branca, com a qual se relacionavam economicamente apenas por meio da rede administrativa da Companhia de Jesus. ... Porém não devemos nos enganar sobre o sentido final dessa subtração de mão-de-obra efetuada pelos jesuítas aos 'encomenderos'. Obviamente a organização jesuítica significou também para os indígenas um sistema de exploração, na medida em que teve ela como resultado uma destruição quase total de seus valores culturais, além da pura espoliação econômica."
O Ensino Jesuítico - O padrão para o ensino jesuítico em Portugal e nas terras descobertas na América, Ásia e África foi dado pelo Real Colégio das Artes de Coimbra, cuja direção fora concedida à Companhia de Jesus em 1555, um dos mais altos estabelecimentos de ensino não superior do reino. Os mestres dos colégios ultramarinos, de fundação real, eram subsidiados pela Coroa, a título de "missões", quer dizer, formar sacerdotes para a catequese da nova terra, de modo a preparar num futuro quem substituísse os padres enviados da metrópole, no trabalho da evangelização. Entretanto, não cuidaram esses colégios apenas da formação de missionários, mas abriram suas portas àqueles que buscavam o ensino em suas aulas públicas, ou para simplesmente se instruírem, ou para irem continuar o aprendizado em medicina ou direito na Universidade de Coimbra.
A importância da Companhia de Jesus para a cultura colonial foi no campo da educação. Os primeiros colégios fundados no Brasil foram os de São Vicente, por Leonardo Nunes, e o de Salvador, por Nóbrega. Logo, acompanhando a expansão dos trabalhos de catequese (entre 1548 e 1604 cerca de 28 expedições de missionários foram enviadas à colônia], uma vasta rede de colégios espraiou-se pelo nosso litoral: São Paulo (1554), Rio de Janeiro (1568), Olinda (1576), Ilhéus (1604), Recife (1655), São Luís, Paraíba, Santos, Belém, Alcântara (1716), Vigia (1731), Paranaguá (1738), Desterro (1750), "Nas aldeias, vilas e cidades, as escolas intitulavam-se 'de ler, escrever, e contar'; e nos colégios, o mestre ora se chamava 'Alphabetarius' (1615), ora 'Ludi-Magister' (mestre-escola), e umas vezes se dizia 'Escola de Rudimentos', outras 'Escola Elementar'. Estava aberta durante cinco horas diárias, repartidas em duas partes iguais, metade de manhã, metade de tarde."
A organização do ensino jesuítico baseava-se no Ratio Studiorum, que, ao mesmo tempo em que era um estatuto e o nome de seu sistema de ensino, estabelecia o currículo, a orientação e a administração. O currículo dividia-se em duas seções distintas (inferiores e superiores), chamadas classes, de onde derivou a denominação "clássico" a tudo o que dissesse respeito à cultura de autores greco-latinos. As classes inferiores, com duração de 6 anos, compunham-se de Retórica, Humanidades, Gramática. Já as superiores, com duração de 3 anos, compreendiam os estudos gerais de Filosofia, para a época, abrangendo Lógica, Moral, Física, Metafísica e Matemática. Tanto num grau como no outro todo estudo era vazado no Latim e Grego e no Vernáculo. O sentido desse ensino Fernando de Azevedo descreveu-o bem: "Ensino destinado a formar uma cultura básica, livre e desinteressada, sem preocupações profissionais, e igual, uniforme em toda a extensão do território... A cultura "brasileira", que por ele se formou e se difundiu nas elites coloniais, não podia evidentemente ser chamada "nacional" senão no sentido quantitativo da palavra, pois ela tendia a espalhar sobre o conjunto do território e sobre todo o povo o seu colorido europeu: cultura importada em bloco do Ocidente, internacionalista de tendência, inspirada por uma ideologia religiosa, católica, e a cuja base residiam as humanidades latinas e os comentários das obras de Aristóteles, solicitadas num sentido cristão. Tratando-se de uma cultura neutra do ponto de vista nacional (mesmo português), estreitamente ligada à cultura européia, na Idade Média,. . .-é certo que essa mesma neutralidade (se nos colocarmos no ponto de vista qualitativo) nos impede de ver, nessa cultura, nas suas origens e nos seus produtos, uma cultura especificamente brasileira, uma cultura nacional ainda em formação."
O ensino jesuítico, tanto em Portugal quanto no Brasil, era público e gratuito. A Companhia tinha mesmo como dever o cumprimento do voto de pobreza, que foi reafirmado por uma determinação oficial de 1556, proibindo aos padres acrescentar qualquer forma de poder material ao religioso. No Brasil, porém, dado não haver um amparo direto da Coroa, como acontecia em Portugal, impôs-se a necessidade de encontrar fontes de recursos para a manutenção de suas instituições. Já o Padre Manuel da Nóbrega utilizara-se deste pretexto perante o delegado da Companhia no Brasil, Luís da Grã, a fim de permitir o estabelecimento de propriedades territoriais, inclusive com a utilização do braço escravo, em contradição com o voto de pobreza. Isso não se restringiu à Companhia de Jesus; o interesse pela propriedade, escravos e bens materiais foi comum às outras ordens religiosas que para cá vieram. Tal fato não deixou de preocupar a Coroa. Neste sentido foi que D. Sebastião, a fim de melhorar a situação, instituiu, em 1564, uma taxa especial para a Companhia, a redízima, descontada sobre todos os dízimos e direitos da Coroa. Mesmo assim, isso não era suficiente para arcar com as despesas, sustentadas, sem dúvida, através das fontes próprias de subsistência: as missões, verdadeiras empresas agro-extrativas da Companhia, os colégios ou suas próprias propriedades particulares.
As Visitações - Cabia também à Companhia de Jesus na colônia a vigilância sobre seus habitantes, de forma a mantê-los dentro dos estritos preceitos da religião católica, controlando os seus modos de vida e suas crenças, tanto combatendo as práticas tidas por pecaminosas como a penetração das seitas heréticas. Já no final do século XVI os jesuítas se ressentiam da liberalidade dos costumes demonstrada pelos colonos, que respiravam com alívio, uma vez longe da Inquisição, de seus atos de fé e queimadeiros. A presença estrangeira no Brasil de protestantes, como ingleses, holandeses e franceses, e mais concretamente, a tentativa de Villegaignon de fundar uma colônia no Rio de Janeiro com franceses calvinistas , tornava real a ameaça ao monolitismo católico que se pretendia assegurar na terra. Tais fatos levavam os inacianos a reclamar com insistência, junto à Companhia, a vinda de um Visitador do Santo Ofício que cuidasse da grave situação. No Brasil não se chegou à fundação de tribunais inquisitoriais permanentes. A Coroa limitava-se a enviar comissários especiais para a realização de processos por causa de fé. Estes funcionários viajavam para os lugares onde eram exigidos e eram conhecidos como "Visitadores".
Decidiu-se Lisboa a promover uma primeira visitação na colônia, enviando Heitor Furtado de Mendonça, que chegou aqui em meados de 1591, para "atalhar este fogo da Heresia". Durante quatro anos percorreu as Capitanias da Bahia e Pernambuco, cumprindo sua missão com tal exagero e prepotência que coube ao próprio Inquisidor-Geral e ao Conselho do Santo Ofício reprimir-lhe os excessos impondo moderação ao fanático Visitador: "Convém ter muita advertência nas prisões que fizer nas pessoas que hão de sair ao auto público, que se faça tudo com muita justificação pelo muito que importa à reputação e crédito do Santo Ofício e a honra e fazenda das ditas pessoas, as quais depois de presas e sentenciadas não se lhe pode restituir o dano que se lhes der."
Muitos foram nas capitanias os acusados e condenados por blasfêmias, por diminuírem, em conversas, o valor da Paixão de Cristo; por atos heréticos que atingiam a autoridade da Igreja; neste caso, estão as inúmeras arbitrariedades contra os "cristãos-novos", acusados de praticar o judaísmo às escondidas; por crimes de bigamia e de "pecado nefando" (práticas sexuais consideradas anômalas). Quantidades deles foram condenados a sair em "auto público" (para serem humilhados e esconjurados pelo populacho) sem serem ouvidos seus protestos de inocência; ou então, presos, tiveram seus bens confiscados, sendo enviados para o reino a fim de serem julgados pelo Conselho do Santo Ofício; alguns sofreram violências maiores, chegando mesmo a haver sacrifício em fogueira pública.
Fonte: paginas.terra.com.br